. * Esse texto é a transcrição abreviada da conferência apresentada por ocasião do II Colóquio dos Residentes em Psicologia Clínica e Saúde Mental do Hospital Juliano Moreira: Saúde Mental: tecendo a rede.Psicanálise e saúde mental, no dia 26 de outubro de 2007.
. Embora eu me sinta profundamente honrado pelo convite para intervir nesse Seminário, eu devo confessar a vocês que não é em nome próprio que hoje irei falar. Eu falo hoje, na realidade, em nome de uma equipe de pesquisa da qual me orgulho de participar, com a qual venho trabalhando já há algum tempo a partir de um projeto financiado pelo CNPq. Esse projeto consiste, para dizê-lo resumidamente, na realização e no desenvolvimento de uma metodologia de intervenção junto aos Centros de Atenção Psicossocial, segundo o paradigma, desenvolvido por Carlos Viganò, da Construção do Caso Clínico, em continuidade com a proposta, elaborada por Di Ciaccia, da chamada clínica feita por muito, a clínica à plusieurs. Seus primeiros frutos já se encontram disponibilizados na revista eletrônica CLINICAPS, a qual foi criada para atender às necessidades de divulgação, assim como para estabelecer interações entre os profissionais envolvidos no trabalho de saúde mental.
. Se vocês lerem uma só vez o editorial dessa revista eletrônica, vocês irão perceber que nosso projeto responde a um programa mais amplo que o antecede e o ultrapassa. Ele se lança no esteio do programa de Reforma Psiquiátrica, proposto no início dos anos 80, valendo-se de uma leitura dos efeitos gerados pela implantação do dispositivo CAPS, enquanto estratégia de substituição ao antigo modelo hospitalocêntrico. Ele se particulariza, no entanto, por sua inserção num momento histórico em que a consideração das dificuldades naturais de seu percurso vêm servir a argumentos que procuram distorcer a percepção de seus rumos.
. Seja como for, hoje é um fato, dificilmente contestável, que não mais se pode conceber uma política de saúde mental alheia à experiência dos dispositivos CAPS. Tanto o volume como a qualidade de publicações dos relatos extraídos desse formidável programa vêem atestar sua importância. Mas em que pese a demonstração inequívoca da pertinência desse modelo, as experiências clínicas que nele se encerram revelam uma heterogeneidade incompatível com as tipificações que o nosso tempo cada vez mais exige, quando se trata de avaliar a eficácia dos dispositivos terapêuticos.
. Tal variedade pode ser entendida a partir da consideração de uma ampla série de motivos, agrupados numa lista, decerto incompleta, que vocês encontram no editorial da revista Clinicaps. Ela deriva, para começar, das condições de implantação de cada serviço, seja pelo maior ou menor interesse do gestor em investir nesta área, seja pelas particularidades político-institucionais de cada região. Afora isso, a experiência clínica também se diversifica conforme os modos de composição das equipes e as conseqüências que esses distintos modos engendram: por um lado, temos as organizações mais discursivas e igualitárias, que tendem a gerar uma rivalidade entre os participantes, por outro, temos organizações mais dogmáticas e hierárquicas, que tendem a fixar na figura de autoridade a base normativa da discussão. A isso se acrescentam dificuldades no estabelecimento de um sistema coerente de atendimento, sobre a qual se possa localizar o modo de circulação dos usuários, assim como a ausência de articulações inter-institucionais bem definidas. E, por fim, há que se levar em conta, como motivo mais radical dessa diversidade, a dimensão ímpar de cada caso que se apresenta concretamente na experiência clínica, cuja singularidade não se deixa mesurar numa avaliação quantificável.
. É considerando, portanto, o problema que nosso tempo coloca com relação à avaliação dos resultados de um programa de trabalho cujo produto não é tipificável, cujo produto não pode ser identificado como elemento de uma coleção visível, que eu gostaria então de interpelar, a partir de nossa experiência, o sentido que tem o uso da bela expressão que vocês escolheram para dar o título a esse colóquio: tecendo a rede. E muito embora haja consenso de que quando se fala em rede, sob o sol da Bahia, a última coisa que nos ocorre é a idéia de trabalho, ainda assim eu gostaria de perguntar por que adotamos a imagem da rede como suporte analógico para tornar pensável o modo de trabalho que se realiza em saúde mental.
. A analogia, como se sabe, responde a uma tentativa de tornar pensável uma coisa desconhecida por comparação com algo já conhecido. Para que possamos adotar uma descrição um pouco mais técnica do termo, eu gostaria que vocês retivessem a distinção entre o que se denomina tema e foro da analogia: o elemento conhecido corresponde ao foro da analogia, ao passo que aquilo que se quer fazer conhecer vem a ser o tema da analogia. Mas esse tornar pensável não é uma pura abstração; ele responde ao uso que se pretende fazer de uma idéia nova, um paradigma cujo sentido ainda foge à clara evidência.
. Chaïm Perelman nos ensina, por exemplo, que quando Descartes se serve, artificialmente, da expressão “encadeamento de idéias”, por mais natural que essa imagem vos pareça, ela resulta de um recorte artificial (PERELMAN, 2004, p. 339). Pois, por si mesmas, as idéias não dispõem de cadeias. Se ele se serve dessa expressão, é porque lhe interessa enfatizar a imagem de uma corrente da qual, se um elo for omitido, o restante da seqüência se desfaz. Lacan, por sua vez, quando se vale da imagem do ponto de estofamento como foro para tratar da operação de significação, ele está às voltas, como os lacanianos bem o sabem, com a necessidade de tornar pensável o efeito retroativo da cadeia significante. Já no momento em que ele fala da angústia, como é o caso do S. X, a analogia já não é mais com a cadeia nem com o ponto de estofamento, mas com as malhas do significante: ele necessita da idéia da malha como foro para pensar a dimensão simbólica como algo que retêm ao mesmo tempo que deixa escapar, construindo a noção de objeto justamente como aquilo que escapa a essa malha.
. O uso, portanto, da analogia, por mais sedutora e singela que ela nos pareça, está longe de ser um gesto natural ou inocente. Basta, vocês percebem, que o raciocínio seja concebido como cadeia, como estofamento ou como malha para que a relação entre o discurso e seus elementos seja vista numa perspectiva totalmente distinta. Quando vocês se servem, por exemplo, da imagem de um jogo de xadrez como foro para conceber uma batalha, vocês deixam evidentemente de lado o seu aspecto sangrento e emotivo, expondo somente o que ali se deixa definir numa relação formal de estratégia. Cada foro escolhido estrutura diferentemente seu tema, colocando em evidência alguns elementos e deixando outros na penumbra.
. Quando, portanto, nos servimos da expressão “tecendo a rede” como foro para tematizar a questão do atendimento, em saúde mental, estamos enfatizando determinados aspectos do que pode vir a ser o atendimento na perspectiva de nosso trabalho, deixando outros de lado. Segundo Milton Santos nos assinala, é na passagem do século XVIII para o século XIX, com o químico Lavoisier, que vemos surgir, na noção de química, como “ciência da ligação e da comunicação das substâncias”, o uso que mais tarde se popularizaria da palavra rede (SANTOS, 2004, p. 261). A imagem de rede nos remete, portanto, em sua origem, à idéia de uma realidade que deve ser pensada mais pela ligação do que pela substância de seus elementos. Dessa assubstancialidade Milton Santos deduz que uma das principais características da rede é a de ser virtual. A rede, em si, é uma abstração virtual. Ele só se torna real (no sentido de wirklich), ela somente adquire realidade quando posta em ação em seu uso concreto na experiência (IDEM, p. 277).
. Por que então, caberia perguntar, nos servimos da imagem de uma tessitura da rede como foro para tratar do tema da saúde mental? O que se quer trazer à luz e o que se quer deixar na sombra quando nos servimos dessa perspectiva? O que significa, enfim, acionar arede, tornar efetiva a rede que tecemos em nosso campo de trabalho? São questões que eu gostaria de deixar no horizonte de nossa reflexão, antes de dar seqüência a meu raciocínio.
. Se me fosse permitido me servir aqui de uma associação livre, eu diria a vocês que a primeira idéia que a imagem da rede me evoca é a idéia de uma rede de proteção, de uma rede de amparo. Na verdade, trata-se de uma associação que, eu creio, não é só minha. Temos uma certa tendência espontânea quase universal em associar a rede à idéia de proteção e de amparo. Essa tendência universal de associar a rede à noção de amparo responde, no meu entender, a um outro universal, que todos os leitores de Freud conhecem. Eu me refiro, como vocês já devem ter adivinhado, ao fenômeno de abandono ou desamparo como condição universal que Freud coloca na origem de nossa disposição moral, condição essa que verificamos, sem exceção em todos os casos sobre os quais trabalhamos em nosso projeto de pesquisa, sem mencionar aqueles que recebemos em nossos consultórios.
. Sendo assim o desamparo uma condição universal de todo ser falante, associar, por sua vez, a noção de rede à idéia de amparo não nos permite passar do virtual ao real, do universal ao singular, do abstrato ao concreto. Essa referência não nos permite nada fixar a propósito da situação singular do sujeito que se apresenta na experiência clínica. Temos aqui apenas um universal abstrato, vazio de qualquer conteúdo concreto, ao qual corresponde uma outra abstração que todos vocês aqui conhecem, forjada pelo poder do estado: a oferta de um programa de saúde pública que visa promover o atendimento dito universal, cuja universalidade, no entanto, se paga pela impessoalidade inerente ao planejamento do programa.
. Pois é um fato, assinalado mais de uma vez por nosso colega Célio Garcia, que não existe programação universal do que se apresenta em nossa experiência clínica (GARCIA, 2003, p. 5). Não existe codificação da demanda em saúde mental acessível a um programa de atendimento universal, uma vez que o código não alcança a queixa, e por isso não atende às exigências mínimas de que necessitamos para operar em nossa prática. Dessa impossibilidade de codificar a demanda resulta um impasse que se apresenta, para nós, no ponto de interseção entre os campos da ciência e da tecnologia, por um lado, e o campo da experiência prática, por outro. Pois é próprio à ciência, vocês me perdoem se estou a dizer obviedades, é próprio à ciência, como se sabe, a produção de um saber que enuncia leis universais sobre o campo em que se aplica. Do momento em que as leis científicas da física e da química devem ser válidas para um universo de casos observáveis, quando se trata de aplicá-las na produção, por exemplo, de um medicamento, este somente poderá ser considerado cientificamente testado se seus efeitos puderem ser verificados num universo determinado. Estamos longe de considerar científico um procedimento cujo efeito pode ser verificado apenas numa experiência singular. É, pois, no interior desse mesmo propósito que a ciência se alia à tecnologia: a ciência dela se serve como instrumento de precisão, produção e verificação dos efeitos mensuráveis e codificáveis.
. Mas, quando se trata do ponto que aqui estamos examinando, qual seja, o lugar da interseção entre a ciência e a tecnologia com a prática que se efetua no campo da saúde mental, as tipificações empíricas e as avaliações quantitativas não mais se produzem tão naturalmente. Ao tomarem, por exemplo, o caso da psicanálise, é curioso lembrar que, a despeito de toda a pressão mercadológica de produzir novidades, a indústria ainda não ousou lançar o divã high-tech. Não existe divã high tech, não existe aprimoramento técnico do divã, porque não é possível codificar, partindo do parâmetro científico-tecnológico, o que seja, empiricamente falando, um tipo clínico em saúde mental. Não existe tecnologia que nos permita distinguir o que vem a ser para nós o caso típico, no sentido em que o típico se define, no campo da ciência, como elemento que pode ser incluído numa coleção de casos que exibem um comportamento previsível.
. Muito pelo contrário, nada mais distante disso do que o caso que se apresenta em nossa experiência clínica. O efeito de uma terapêutica depende de uma conjunção complexa de fatores que de longe ultrapassam as transformações físico-químicas que um medicamento produz no corpo do paciente: elas percorrem um leque que se estende desde o sentido que tem, para determinado sujeito, estar fazendo uso de uma substância, passando pelo modo de relação transferencial que ele mantém com quem o prescreve, sem mencionar o tipo variável de expectativa que ele dirige aos demais participantes da equipe que dele se ocupa.
. Dada, pois, essa complexidade, da qual deriva a impossibilidade de definir, mediante uma doutrina de saber consistente, o que seria o caso clínico tipificável no âmbito da psicopatologia, a solução proposta foi a de criar uma codificação arbitrária. A nosologia que hoje prevalece, iniciada pelo DSM e finalmente adotada pelo CID, hoje se apóia numa tipologia de convenções, sem compromisso com a teoria. Não é preciso pesquisar muito para verificar isso essa demissão da teoria nas classificações atuais das doenças mentais. Basta ler os prefácios tanto do DSM quanto do CID para constatar que seu programa atualmente se pauta por uma abordagem que se pretende o mais puramente descritivista, visando dissociar a classificação nosológica de todo esforço de teorização.
. Pois bem. Se ainda tiverem paciência para continuar a ler esse insípido prefácio do DSM, vocês verão que a razão para tanto seria, se quisermos nos ater ao principal argumento de seus idealizadores, que uma classificação deliberadamente ateorética favoreceria, em princípio, um maior consenso entre os pesquisadores. Ora, todos aqui bem sabem que é preciso muito mais do que um consenso de definições para se integrar esforços de pesquisa. Mesmo definições comuns não conservam essa suposta neutralidade teórica, visto que cada profissional dela se serve conforme sua orientação para designar entidades distintas. Os termos de psicótico ou de perverso, no discurso jurídico, significam coisas absolutamente diferentes quando saídos, por exemplo, da boca de um psicanalista. Quanto ao mais, se dependêssemos do consenso para pesquisar, seríamos até hoje geocentristas. Tal estratégia assemelha-se, portanto, mais à “imposição de um consenso”, se nos permitem o oxímoro, do que à um consenso propriamente dito. Desse fato se explica a passividade à qual é obrigado o profissional na leitura dos critérios de classificação propostos pelos atuais compêndios, assim como a apatia inevitável que experimentam os estudantes. Ao estudar uma entidade mórbida, é-se confrontado com uma série descritiva de fatos ou de situações que se amontoam uns sobre os outros, sem que se saiba qual é a ordem que os unifica.
. Poderíamos então dizer que nosso projeto responde à necessidade, que julgamos premente, de rearticular a teoria no seio da observação clínica, mas as coisas não são tampouco simples assim. Como vocês podem ler, na revista Clinicaps, em artigo publicado por Anamáris Pinto (2007), aqui presente, que faz parte de nossa equipe, um dos problemas mais importantes com o qual nos deparamos, em nossas intervenções, diz respeito à coexistência, nos centros de atendimento, de um leque eclético de orientações teóricas não raro divergentes que disputam lugar na condução dos casos. Ali se encontram equipes que incluem tanto terapeutas biologicistas quanto os que se valem de uma abordagem mais psicodinâmica, afora aqueles de orientação cognitivista, para não citar vários outros. Diante desse fato, intervir nos serviços CAPS propondo um outro paradigma teórico só faria ampliar ainda mais esse leque já demasiado plural dos saberes, deixando sem resposta a questão de definir qual finalmente seria a orientação clínica a ser seguida.
. Diante desse fato, prossegue Anamáris Pinto (2007):
se o espaço em que os vários saberes disputam entre si é o lugar da prescrição da melhor conduta, o que se constata é que a sessão clínica só pode funcionar como princípio de articulação desses saberes ao esvaziar justamente o lugar visado pela prescrição. Isso somente é possível ao se tomar como guia não o saber teórico, mas o saber do próprio sujeito em tratamento, no lugar esvaziado dos saberes prescritivos. (PINTO, 2007, p. 02). |
. Há, como se pode perceber, uma inspiração profundamente freudiana nessas linhas, sem que por isso se trate de ali prescrever a teoria freudiana do padecimento mental. Pois o que fazia Freud, no momento em que normalmente se propunha um saber sobre a sexualidade da criança, senão chamar a atenção, em suas “Teorias sexuais infantis”, para o saber que as próprias crianças construíam em resposta à questão que a realidade do sexo coloca?
. Insistimos, portanto, que muito embora o nosso projeto resulte das conseqüências que podemos extrair da orientação psicanalítica, em nossa relação com os serviços de atendimento em rede pública, a psicanálise em nenhum momento assume para nós uma função prescritiva na condução dos casos atendidos. Para ressaltar melhor isso, ocorreu-me buscar, como fonte de comparação, um ensinamento extraído de um campo exterior não somente à teoria da psicanálise, mas de todo campo da saúde mental, no intuito de expor, fora de nosso comprometimento doutrinal, o que significa para nós, psicanalistas, orientar-se pelo saber do sujeito em tratamento.
. Uma vez que intervenho num colóquio de saúde pública, eu gostaria de me referir, especificamente, ao conceito de “distritalização sanitária” que se encontra descrito por Eugênio Mendes (1993), a partir do paradigma proposto pelo geógrafo Milton Santos (2004), para quem o espaço é o “resultado da inseparabilidade entre sistemas de objetos e sistema de ações”(SANTOS, 2004, p.100). Trata-se de pensar o espaço como território-processo, a ser entendido “como um conjunto indissociável de que participam, de um lado, certo arranjo de objetos geográficos naturais e sociais e, de outro lado, a sociedade em movimento” (SANTOS, 1991, p.18). Conforme essa perspectiva, o distrito sanitário, em vez de ser um recorte territorial imposto por uma autoridade sanitária, constitui-se antes como um “lugar de negociação e concertação constante entre os diferentes atores sociais do território distrito”(MENDES, 1993, p.265). Longe de ser tecnocraticamente constituído, esse território deve sua existência ao conjunto de relações geradas pelos seus próprios processos sociais. Esse território se compõe, por exemplo, numa cidade banhada por um rio, a partir das relações que ali se estabelecem entre aqueles que vivem da pesca, os trabalhadores de uma represa que do mesmo rio se serve para gerar energia elétrica, assim como pelos funcionários de uma cooperativa que atende à demanda dessa população.
. Se transpormos então essa discussão para o nível do atendimento clínico, tal como a noção de construção do caso nos autoriza a fazer, diríamos então que, da mesma maneira que o conceito de território-processo, acima descrito, deve servir de guia para as políticas sociais de saúde pública, os modos de solução encontrados pelo próprio sujeito em atendimento, assim como o saber que ele próprio dali engendrou, deve ser o principal vetor de orientação a ser utilizado nos trabalhos em equipe. Para valermos agora de nossa terminologia, diríamos da necessidade, descrita por Cristiana Ramos em nossa revista, de se separar da perspectiva de um saber sobre o sujeito, em que as soluções chegam ao paciente como determinações impostas desde o campo do Outro social, para lhe dar a possibilidade de realizar ele mesmo uma composição com esse Outro a partir das saídas que ele mesmo criou. Não nos cabe colocarmo-nos a serviço desse Outro social como princípio normativo de orientação do tratamento; está antes em questão criar, como enfatiza Carlo Viganò (1999), o lugar do Outro que permite a palavra do paciente.
. Mas não se trata tampouco, como se é tentado a crer, de propor uma perspectiva interdisciplinar. Conforme ressalta Renata Andrade (2007), num outro artigo da Clinicaps, não visamos substituir o modelo hierárquico do “quem sabe mais pode mais”, que dá geralmente ao médico a prerrogativa da decisão sobre a equipe, por uma espécie de democratismo em que todos os saberes se valem e se articulam: “a autoridade passa a ser o saber do paciente, este é o saber focalizado na construção do caso clínico”(ANDRADE, 2007, p.02)
trata-se de um trabalho de recolhimento das passagens subjetivas que possam apontar a relação do sujeito com o Outro [...] permitindo à equipe que o acompanha operar em uma lógica de trabalho na qual o paciente nos dirá qual é a direção da cura. (ANDRADE, 2007, p. 03) |
. Segundo a mesma perspectiva, escreve W. Alkmin (2007), a construção do caso deve partir de uma posição de não saber: é preciso operar com “um vazio de saber que permite que o paciente faça suas próprias perguntas sobre o seu mal-estar” (ALKIMIM, 2007, p.02). Por esse motivo, ele prossegue, “a construção do caso clínico longe de ser um trabalho definitivo e estanque, é sempre uma construção provisória, sujeita aos limites do material que já emergiu” (ALKIMIM, 2007, p.02), e pronta a ser modificada pelo que ainda está por se revelar nas falas e condutas do sujeito. Longe de constituir uma deficiência, sua provisoriedade tem a virtude de fazer “um furo no saber dogmático que determina as condutas terapêuticas repetitivas e estereotipadas” (ALKIMIM, 2007, p.02) próprias ao automatismo das instituições. Cabe fazer, como observa Célio Garcia, com que o sistema não se apresente no mesmo lugar, lembrando que quem reincide não é o paciente, mas “a instituição na sua mesmice, no seu anacronismo, nos seus hábitos, quanto tudo em volta se modifica e evolui” (GARCIA, 2003, p. 7).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALKIMIM, W. (2007) “Construir o caso clínico, a instituição enquanto exceção. Revista Eletrônica Clinicaps no1.
ANDRADE, R. (2005) “Discussão X Construção do caso clínico”. Mental – Revista de Saúde Mental e Subjetividade. UNIPAC, ano III, nº 4
GARCIA, C. (2003) “Rede de Redes”, in Tô fora: o adolescente fora da lei, B.H., Del Rey, pp. 4-5.
MENDES, E. (1993) “Um novo paradigma sanitário”. in: Uma agenda para a saúde, São Paulo, Hucitec, p. 265.
PINTO, A. (2007) “A Sessão Clínica como articuladora da diversidade dos saberes”. Revista Eletrônica Clinicaps no 1
SANTOS, M. (1991) Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo, Hucitec, p. 18 (APUD in MENDES, E. “Um novo paradigma sanitário”. IN: Uma agenda para a saúde, São Paulo, Hucitec, 1993, p. 265).
SANTOS, M. (2004) A natureza do espaço, São Paulo, Edusp, p. 100.
VIGANÒ. C. (1999) “A construção do caso clínico em Saúde Mental.” Curinga no 13. Belo Horizonte: EBP-MG, p. 56 (APUD in ALKIMIM, W. Construir o caso clínico, a instituição enquanto exceção. IN: Revista Eletrônica Clinicaps no 1, 2007).
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