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I. INTRODUÇÃO
Digam de mim o que quiserem (pois não ignoro como a Loucura é difamada todos os dias, mesmo pelos que são os mais loucos), sou eu, no entanto, somente eu, por minhas influências divinas, que espalho a alegria sobre os deuses e sobre os homens (Desiderio Erasmo, 2007).
Ao longo da historia da humanidade a concepção da loucura foi vista e construída de acordo com o seu contexto cultural, social, político e histórico. Várias denominações foram atribuídas à loucura, estigmatizando-se assim, as pessoas que eram afetadas por algum sofrimento mental1. Dos "gregos até os modernos a loucura esteve presente na história do pensamento, quase sempre como um erro, quase sempre como um engano ou gafe para o bem pensar" (VASCONCELLOS, 2000, p. 21).
Michael Foucault (1926/2012) trouxe contribuições importantes na sua obra, História da Loucura na Idade Clássica, ao afirmar que, "a loucura e o louco tornam-se personagens maiores da ambiguidade: ameaça e irrisão, vertiginoso desatino do mundo e medíocre ridículo dos homens" (FOUCAULT, 1926/ 2012, p. 14).
No pós-guerra, surge um cenário promissor em relação aos movimentos reformistas políticos e sociais no Brasil, e outras formas de pensar e cuidar da loucura, foram sendo implantadas à política de saúde mental, sob a orientação de princípios democráticos no decorrer dos anos. Surgindo assim, um novo coletivo social capaz de se envolver e de se articular com a construção de um espaço de cidadania para a loucura.
Nessa perspectiva, com este trabalho, pretende-se pensar a realidade do usuário de saúde no contexto brasileiro atual a partir das trilhas da Luta Antimanicomial. Realizando assim, uma reflexão crítica acerca dos caminhos e descaminhos das políticas públicas de saúde mental. São notáveis os avanços e conquistas destas políticas de saúde mental, porém, ainda, existem desafios à lógica de desinstitucionalização. É preciso considerar a importância da interlocução das redes de saúde mental na atenção e no cuidado ao sujeito em sofrimento psíquico. Infere-se que é a partir das relações compartilhadas entre os sujeitos, que haverá a construção de novas subjetividades e espaços de circulação para a loucura.
II. REFORMA SANITÁRIA E REFORMA PSIQUIÁTRICA: um breve percurso histórico.
1 "O louco era considerado até o advento de uma medicina positiva como um "possuído". E todas as histórias da psiquiatria até então quiseram mostrar no louco da Idade Média e do Renascimento um doente ignorado, preso no interior da rede rigorosa de significações religiosas e mágicas" (FOUCAULT, 1975, p. 52).
No Brasil, a Reforma Psiquiátrica aconteceu em um período de grande efervescência política. A sociedade estava mobilizada a lutar pela redemocratização do país, após a segunda metade da década de 1970. Vários movimentos sociais surgiram nesse contexto, como forma de protesto e denúncia contra a violação dos Direitos Humanos praticada em instituições psiquiátricas, tais como, as torturas, os eletrochoques, o regime de isolamento social e a cronificação dos pacientes (AMARANTE, 1995).
A Reforma Psiquiátrica expõe que seria impraticável não mencionar as suas origens para entendê-la (YASUI, 2006). Assim, destacam-se os sujeitos da sociedade civil, que estavam comprometidos em articular e questionar as práticas hegemônicas e opressoras que o Estado negligenciava. O autor, ainda menciona que, "são essas ações que pressupõem verbalização e afirmação de interesses, disputas, articulações, conflitos, negociações, propostas de novos pactos sociais" (YASUI, 2006, p. 22).
Esta luta política engendrada por diversos atores sociais ficou marcada pelo espírito de transformação social. Muitos destes que ao se organizarem além do entorno do cenário da política de saúde mental no Brasil, estiveram aliados a uma postura crítica ao regime político nacional. Pois, também, era necessário pressionar o Estado a institucionalizar um modelo político liberal, bem como consolidar a democracia brasileira. Para Yasui (2006) os movimentos sociais da década de 1970, expandiram para outros cenários, produzindo um efeito de mudança em busca de uma nova sociedade, cuja base era de tentar "mudar as relações sociais, possibilitar a participação nos bens econômicos, culturais, construir um mundo mais justo, mais equânime, mais livre" (YASUI, 2006, p. 22).
Neste cenário, um dos movimentos sociais que contribuiu para a Reforma Psiquiátrica, no Brasil, foi relatado por Amarante (1995) como sendo, a crise da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM) 2. Crise esta, que denunciou as precárias condições de trabalho dos profissionais, a falta de qualidade assistencial nos atendimentos prestados aos pacientes psiquiátricos da instituição, que estavam submetidos a maus tratos, agressões e óbitos sem maiores esclarecimentos. Em meio a esse contexto, com a greve dos médicos do DINSAM, em 1978, inicia-se o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTMS) 3, sendo um evento de ampla repercussão nacional, que inaugurou o processo de Reforma Psiquiátrica no
2 "Órgão do Ministério da Saúde responsável pela formulação das políticas de saúde do subsetor Saúde Mental" (AMARANTE, 1995, p. 51).
3 O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental é um movimento plural formado por trabalhadores integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas (AMARANTE, 1995).
país. A composição dos trabalhadores do MTMS era bastante heterogênea, o que o diferenciava e o potencializava na sua atuação e no espaço de luta pela Reforma.
Este movimento de origem sanitarista foi essencial no projeto da Reforma Psiquiátrica brasileira (AMARANTE, 1995). Foram esses atores políticos que protagonizaram as propostas de reformulação assistencial, contribuindo para a construção do pensamento crítico ao saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico.
O Movimento da Luta Antimanicomial prosseguiu em sua militância, no auge do contexto reformista, ampliando seu campo de força e atuação em vários segmentos da sociedade. O país passava por uma turbulenta mudança política, cujo objetivo era promover a eleição direta para o cargo de Presidente da República, em contraposição ao regime ditatorial.
Nessa conjuntura de acontecimentos em busca de melhorias na qualidade de vida, e anseio pela redemocratização brasileira, ocorreu a I Conferência Nacional de Saúde Mental, em junho de 1987, no Rio de Janeiro, em desdobramento à 8ª Conferência Nacional de Saúde. Em dezembro do mesmo ano, na cidade de Bauru – SP, no 2º Encontro Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, é registrada a data histórica da criação do "Dia Nacional da Luta Antimanicomial, expressão clara e consistente do movimento" (VASCONCELOS, 2008, p. 129).
Marcava-se, então, o fim da trajetória sanitarista, e dava-se início ao percurso da desinstitucionalização. Estes acontecimentos constituíram na introdução de novos serviços assistenciais à saúde mental, como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), no ano de 1987, em São Paulo. Posteriormente, ocorreu à criação de Núcleos de Atenção Psicossocial (AMARANTE, 1995). O CAPS "surge, em sua proposta inicial, como uma forma substitutiva de resposta ao hospital psiquiátrico, absorvendo os casos mais graves, cujo destino inicial era a internação" (CLINICAPS, 2002, p. 1) 4.
A Diretriz que trata do projeto do CAPS baseia-se na diminuição do número de internações e do montante de leitos em esfera nacional, possuindo então, o objetivo de eliminar as internações de longas permanências.
As unidades do CAPS,
juntamente com as equipes de saúde mental distribuídas nos centros de saúde introduzem no SUS a proposta da atenção à saúde mental dentro da rede de atenção
4 Projeto de pesquisa "Avaliação dos efeitos discursivos da Capscização no Estado de Minas Gerais". "Investigações Sobre os Efeitos Discursivos da "Capscização" do Estado de Minas Gerais" (CLINICAPS, 2002, p. 1).
à saúde já existente, corroborando com os preceitos nacionais que orientaram este sistema" (CLINICAPS, 2002, p. 1) 5.
Dessa forma, a nova política pública de saúde mental teria princípios democráticos que estabeleceriam maior participação social. Com esta nova proposta de cunho político-social o que se pretendia era garantir articulações valiosas para que as demandas fossem ajustadas de acordo com as necessidades dos usuários.
Neste contexto de movimentos sociais, tanto a Reforma Sanitária, quanto a Reforma Psiquiátrica, foram fundamentais para o processo de transformação e construção da assistência de serviços em saúde mental. Na configuração dos serviços assistenciais à saúde mental, os conceitos de humanização e de reinserção social, bem como a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), no ano de 1988, foram importantes impulsionadores a partir da década de 1990, no incremento gradual de uma rede de cuidados substitutivos ao hospital psiquiátrico.
No final da década de 1980, precisamente em 1989, há o Projeto de Lei nº 3.657/89, de autoria do Deputado Federal Paulo Delgado, que "propõe a extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos públicos no Brasil" (AMARANTE, 1995, p. 115). Já no início dos anos de 1990, têm-se as Portarias Ministeriais da Secretaria Nacional de Assistência à Saúde n.º 189/91 e n.º 224/92. Outro marco histórico é a aprovação da Lei nº 10.216/01 que introduz os direitos aos "portadores de transtornos mentais" (BRASIL, 2001).
Quando se atenta para algumas das datas referentes à criação de instrumentos e leis que se dispõe à iniciativa da Reforma, depara-se com outras normativas, como por exemplo: a Portaria/SNAS nº. 224 de 29 de janeiro de 1992. Esta estabelece as Diretrizes da Política de Saúde Mental no país. Suas diretrizes ainda são válidas para os hospitais. Ou seja, esta é a portaria que trata da regulamentação do CAPS.
No entanto, é a Portaria GM/MS nº. 336 de 19 de fevereiro de 2002, que define e estabelece diretrizes para o funcionamento dos CAPS, aprovada pelo Ministério da Saúde, em consonância com a Lei 10.216/01, que "estabelece várias modalidades de serviços psicossociais como o CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi e CAPSad na rede de saúde mental" (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 22).
Nota-se assim, que com todas estas novas implementações e redirecionamentos dos serviços no campo da saúde mental, criam-se formas substitutivas de atenção e cuidado.
5 Projeto de pesquisa "Avaliação dos efeitos discursivos da Capscização no Estado de Minas Gerais". "Investigações Sobre os Efeitos Discursivos da "Capscização" do Estado de Minas Gerais" (CLINICAPS, 2002, p. 1).
Trata-se de uma atenção não mais centrada no hospital psiquiátrico, muito menos, na figura do médico, mas que funciona na lógica da comunidade, do território e na produção de vida. E nessa perspectiva, a Organização Mundial de Saúde (OMS, 2001), concebe como princípios de atenção em Saúde Mental, a "atenção baseada na comunidade que pode identificar recursos e criar alianças saudáveis que, noutras circunstâncias, ficariam ocultas e inativas" (OMS, 2001, p. 53).
III. O PAPEL DAS REDES SUBSTITUTIVAS E A MICROPOLÍTICA DAS RELAÇÕES
Entende-se que "a questão micropolítica é uma analítica das formações do desejo no campo social" (GUATTARI & ROLNIK, 1996, p. 127). Em conformidade com a ideia apresentada acerca da micropolítica como formações do desejo no campo social, tem-se a criação de redes substitutivas aos hospitais psiquiátricos como um novo olhar acerca da loucura, ao considerar a abertura de novos serviços, e a articulação de outros saberes e práticas voltadas em acolher o sujeito que sofre.
Nesse longo e permanente processo de transição democrática - para a construção e consolidação dos direitos políticos, sociais e éticos - ocorreram encontros de vários segmentos sociais, formando um campo de lutas, que configura aqui, o desejo como produção de real social. Produção, esta, que se dá ao se pressionar o Estado, a fim de instituir mudanças efetivas em relação às condições de vida das pessoas, bem como a emancipação de cada sujeito e da sociedade. Parte-se da ideia apresentada por Suely Rolnik (1989) ao dizer que,
paisagens psicossociais também são cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo tempo em que o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornam-se obsoletos (ROLNIK, 1989, p. 15).
Desse modo, identifica-se que havia um desejo coletivo de transformar um período carregado de opressão, de vozes silenciadas, de estigmatizações e isolamentos, em um mundo autônomo, humanizado, e mais justo. A sociedade estava pedindo "passagem livre" de universos hegemônicos e totalizantes, para mundos compartilhados pela participação coletiva e por ações plurais. De acordo com Rotelli (2015) "a liberdade é um fato coletivo. É preciso que estejamos juntos para sermos livres. Ninguém pode ser livre sozinho, ninguém pode ser livre se não tem uma finalidade comum com os demais" (ROTELLI, 2015, p. 41). Entende-se que esta finalidade comum, deve estar alicerçada na propagação dos afetos com o corpo
social, É por meio da reinvenção das relações no coletivo, que poderemos produzir outros modos de superar democraticamente um novo lugar para acolher o sujeito em sofrimento psíquico.
No campo da saúde mental, também ocorreu o exercício do afetar-se, e ser afetado pelo coletivo social quando, os vários atores sociais, se organizaram para mudar o cenário desumano no qual os nomeados "loucos" estavam submetidos. E, a partir daí, após uma intensa luta pelo resgate dos direitos civis, e a busca pela dignidade humana de pessoas em sofrimento psíquico, surgem novos sujeitos, engajados em construir uma nova história que promoveria a produção de vida, a participação popular e o direito à cidadania.
Esta vontade coletiva de mudança, também poderá ser expressa nos mais variados lugares da vida, podendo se dar "individualmente, ou por iniciativa de um grupo, ou de uma sociedade" (ROLNIK, 1989, p. 55). A autora ainda argumenta que, o surgimento de modos de existência podem se dar em "diferentes destinos, dramas, cenários, estilos", evidenciando "toda a riqueza do desejo", as micropolíticas dos encontros, "o desejo é criação do mundo" (ROLNIK, 1989, p. 55).
E, essa nova história de iniciativas entrelaçadas por um desejo de mudanças, utilizar-se-á, de coletivos produtivos como, espaços psicossociais, comunidades, cidades e territórios para desenvolver um trabalho de redes integradas voltadas à atenção, ao cuidado e à inserção social.
Para que de fato haja um trabalho arregimentar entre os atores sociais, é necessário que aconteça a interlocução entre os dispositivos assistenciais da rede de saúde mental, oferecendo aos usuários dos serviços, um trabalho cotidiano de produção de cidadania, caso contrário, estagnaremos na opressão mais uma vez.
Segundo Amarante (2007) o que se deve configurar no cenário das estratégias de saúde mental é, "certamente, a construção de um novo modo de lidar com o sofrimento mental, acolhendo e cuidando efetivamente dos sujeitos, e a construção, consequente, de um novo lugar social para a diversidade, a diferença e o sofrimento mental" (AMARANTE, 2007, p. 108).
Entretanto, não é bem assim que as coisas funcionam na prática. O cotidiano dos serviços, na maioria das vezes, depara-se com diversos atravessamentos nas relações entre usuários da saúde mental e profissionais. Veem-se relatos na literatura, e, em vivências profissionais na saúde geral, que denunciam a falta de preparo e desalinhamento dos profissionais da saúde, na relação com o sujeito com sofrimento mental. Como exemplo, entre tantos outros narrados na literatura:
[...] os enfermeiros apresentaram dificuldades em lidar com a diferença, com o "estranho", o singular e o subjetivo. O preconceito da doença mental funciona como uma espécie de cegueira coletiva, que conduz ao não cuidado. Podemos ver o invisível com o olhar interior, ver com os ouvidos, com o cérebro e com a alma, estamos todos cegos em mundo saturado de imagens (ELIAS; TAVARES & CORTEZ, 2013, p. 778).
Por esse viés o que temos hoje, como efeito da Luta Antimanicomial são vários dispositivos legais das políticas públicas, que estão alicerçadas nos princípios constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS), vigente no Brasil desde a década de 1990. Sendo este, regulamentado pela Lei 8.080/90, que considera a "universalidade, a integralidade e a equidade nos serviços e ações de saúde, por um lado, e por outro, seus princípios organizacionais que são a descentralização, a regionalização e a hierarquização da rede e a participação social" (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2000, p. 30).
Em face dessas experiências inovadoras de assistência, foi inaugurado no ano de 1986, em São Paulo, o primeiro CAPS no Brasil, sendo intitulado de Professor Luiz da Rocha Cerqueira. Este momento representou um passo importante em relação ao modo de cuidar e conceber o sujeito com sofrimento mental, prescindindo da lógica da centralidade do hospital psiquiátrico, para locais territorializados (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004).
Nesse sentido, o CAPS ocupou um lugar central na descentralização, na regionalização, e na integração da rede substitutiva ao modelo hospitalocêntrico. O CAPS constitui a principal estratégia da Reforma Psiquiátrica. Este serviço é considerado como um dos articuladores imprescindíveis e agregador de estratégias na rede de cuidados em saúde mental. Assim, a legislação logo designou que os CAPS:
deverão assumir seu papel estratégico na articulação e no tecimento dessas redes, tanto cumprindo suas funções na assistência direta e na regulação da rede de serviços de saúde, trabalhando em conjunto com as equipes de Saúde da Família e Agentes Comunitários de Saúde, quanto na promoção da vida comunitária e da autonomia dos usuários, articulando os recursos existentes em outras redes: sócio-sanitárias, jurídicas, cooperativas de trabalho, escolas, empresas, etc (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 12).
Desse modo, O CAPS realiza acompanhamento clínico aos sujeitos em sofrimento/crise, e também, promove a inserção social dos usuários. De acordo com o Ministério da Saúde (2004), compete ao CAPS:
Prestar atendimento em regime de atenção diária;
Gerenciar os projetos terapêuticos oferecendo cuidado clínico eficiente e personalizado;
Promover a inserção social dos usuários através de ações intersetoriais que envolvam educação, trabalho, esporte, cultura e lazer, montando estratégias conjuntas de enfrentamento dos problemas. Os CAPS também têm a responsabilidade de organizar a rede de serviços de saúde mental de seu território;
Dar suporte e supervisionar a atenção à saúde mental na rede básica, PSF (Programa de Saúde da Família), PACS (Programa de Agentes Comunitários de Saúde);
Regular a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental de sua área;
Coordenar junto com o gestor local as atividades de supervisão de unidades hospitalares psiquiátricas que atuem no seu território;
Manter atualizada a listagem dos pacientes de sua região que utilizam medicamentos para a saúde mental. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 13).
Desse modo, as redes de atenção à saúde mental dispõem de um conjunto de serviços que são ofertados na comunidade. O trabalho dessas redes envolve o acolhimento e promoção de vínculos entre os profissionais, usuários, familiares, comunidade e território, bem como a integração em todos os níveis assistenciais, viabilizando e garantindo o acesso ao usuário de forma integral e participativa. E para que haja um trabalho de qualidade entre as várias equipes, é necessário que a rede esteja entrelaçada pelo desejo de criar, ousar, inovar, além de enfrentar permanentemente os desafios e tensões que possivelmente surgirão nos coletivos sociais.
Neste aspecto, temos as políticas públicas e suas diretrizes para serem articuladas com o campo da saúde mental, e, ao mesmo tempo, temos diversos dispositivos normativos, que devem ser utilizados de acordo com as necessidades dos sujeitos com sofrimento mental. Mas, caso contrário, se as normativas das políticas públicas de saúde não estiverem em consonância teórica-prática com as redes comunitárias e com os territórios, e vice-versa, não poderemos afirmar que estamos avançando no processo de desinstitucionalização.
Assim sendo, "devemos pensar o campo da saúde mental e atenção psicossocial não como um modelo ou sistema fechado" (AMARANTE, 2007, p. 63). Se os serviços da rede comunitária não se propuserem a integrar na comunidade os diversos equipamentos de atenção e cuidado na sua prática diária, tenderemos a "sucatear" o CAPS.
O CAPS é um serviço de referência, mas não é o único dispositivo da rede de saúde mental. Se não houver manejo clínico e institucional do próprio serviço entre os vários equipamentos que compõe a rede de assistência à saúde mental - considerando o sujeito, as suas necessidades, cada caso clínico, bem como as novas diretrizes que possam ser adotadas nos serviços, que prescindam à lógica da centralidade do hospital psiquiátrico, dos protocolos, da hierarquia, para o empuxo à invenção de práticas abertas e coletivas, estaremos retrocedendo ao paradigma antimanicomial.
Como uma ferramenta que deveria emancipar o sujeito em sofrimento mental, o CAPS jamais poderia utilizar em suas práticas cotidianas, formas de "aprisionar" os seus usuários. O
CAPS é meio, é espaço de produção de subjetividade, de autonomia, e não fim, quando mantém estáticos os corpos e a vida dos sujeitos em sofrimento mental. Por ser um ordenador da porta de entrada no campo da saúde mental, e por receber demandas variadas nos seus serviços, não pode engessar o seu saber-fazer.
É preciso viabilizar uma rede bem tecida no âmbito da saúde mental, para que os usuários possam se beneficiar dos serviços, e da articulação de suas ações nos espaços públicos. E para tal, se faz necessária à articulação entre os gestores, a instituição, os técnicos, as equipes, os usuários, os familiares, outros segmentos da sociedade, bem como, o desejo de cada um, para haver a construção de um fazer entre muitos.
Supõe-se que é a partir da circulação dos corpos, dos discursos, das ações, dos desejos e da invenção nos vários espaços de convivência no coletivo, é que podemos avançar na lógica da desinstitucionalização. Caso contrário, estaremos apenas reproduzindo ações normalizadoras na iminência de cronificar os usuários que buscam esses serviços como um meio de resgatar seus direitos, sua liberdade e sua cidadania.
Ainda que, alguns usuários não tenham a dimensão do que as políticas públicas asseguram a eles, e estejam subordinados a certos serviços, ou até mesmo, já tenham estabelecido vínculo com a instituição que os acolheu, não se pode desconsiderar que os equipamentos da rede, os CAPS, são serviços substitutivos, abertos, e que devem operar insistentemente no território, para que seus usuários possam circular por outros espaços públicos.
No entanto, não há ainda um serviço substitutivo que consiga funcionar nos preceitos da lógica descentralizadora, desinstitucionalizante, antimanicomial e emancipatória. São muitas as dicotomias e contradições que ainda acontecem no seio da instituição CAPS. Além disso, ao considerarmos as propostas e implementações da Reforma Psiquiátrica, é possível perceber o quão temos que operar nas arestas do cotidiano clínico, político, ideológico, social e cultural dos trabalhadores, dos atores sociais, dos gestores e dos familiares.
Proporcionar e garantir o direito do exercício à cidadania aos sujeitos acometidos com sofrimento mental, não é tarefa simples, aliás, é um dos grandes desafios que se apresenta no campo das ações da saúde mental. De acordo com Dimenstein (2009),
inúmeros estudos vêm apontando para a manutenção da lógica ambulatorial e das filas de espera nos CAPS, para a falta de profissionais qualificados, apesar das supervisões, as quais, por sua vez, demonstram uma nítida dicotomia entre a clínica e política, e especialmente, para o fato de ser um serviço sem nenhuma articulação no território, voltado para si próprio. Ou seja, a proposta de ser o ordenador da rede não se efetiva, indicando a produção de novas ordens de cronicidade (DIMENSTEIN, 2009, p. 216).
Temos um enorme desafio pela frente, ao considerar que os paradigmas da concepção da loucura tradicional, ainda não foram extintos pela sociedade, e muito menos, por todos os sujeitos que se propõe a tratar e cuidar do sujeito com sofrimento mental. Na concepção de Amarante (2007) "é preciso mudar mentalidades, mudar atitudes, mudar relações sociais" para concretizarmos a construção de cidadania, ou seja, de espaço de vida no cotidiano dos serviços. (AMARANTE, 2007).
Diante dessas inúmeras possibilidades legais de dispositivos diversificados, temos o desafio de colocar em prática, essas estratégias de serviços, conforme prevê o Ministério da Saúde (2004) ao realizar, "atendimentos individualizados às famílias, atividades comunitárias, atividades de suporte social e oficinas culturais, visitas domiciliares," (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004, p. 21), dentre outras ações, que resultem em espaços comunicativos de sociabilidade e de trocas que favoreçam a produção de novas subjetividades.
IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar o cotidiano do usuário de saúde mental nos serviços de saúde básica requer considerar práticas intersetoriais, processos de afirmação de cidadania e uma rede de saúde bem tecida. Afinal, o usuário de saúde é um sujeito que transita por vários serviços da rede, assim como qualquer cidadão que faz uso da saúde básica.
Amarante (2007) ao tecer à relevante argumentação à definição de Franco Rotelli (1990) tem-se que a saúde mental e a atenção psicossocial, são processos; processos de natureza e ordem sociais; e desta maneira os processos sociais são complexos. Amarante (2007) complementa dizendo que, "um processo social complexo se constitui enquanto entrelaçamento de dimensões simultâneas, que ora se alimentam, ora são conflitantes; que produzem pulsações, paradoxos, contradições, consensos, tensões" (AMARANTE, 2007, p. 63).
Muito se caminhou até agora, porém os serviços da saúde básica, ainda não compreendem o usuário de saúde mental em sua integralidade de sujeito de direito. Desse modo, o sujeito, usuário dos equipamentos da saúde mental, ainda é designado nos dispositivos da Atenção Básica como o paciente exclusivo dos profissionais "psis", ou seja, ele é exclusivamente o paciente da saúde mental. Pressupõe-se que quando os serviços de saúde mental operam na lógica hegemônica,sabemos, portanto, que daí derivam as práticas de controle, tutela, domínio, normatização e medicalização, tão evidentes em nosso cotidiano. A manutenção dessas práticas, a produção de novas formas de controle cada vez mais sutis e
eficazes, assim como a dificuldade de produzir interferências nesse âmbito, tudo isso vem sendo descortinado dia após dia. (DIMENSTEIN, 2009, p. 212).
Mesmo com todas as atuais conquistas da Luta Antimanicomial, as leis, diretrizes/portarias e principalmente os desafios já superados, há "muros" que são apresentados ao acesso do usuário à saúde em sua integralidade. "Muros" estes, que não são mais concretos, mas passam a ser ideológicos. É justamente este aspecto que aponta para a necessidade da Luta Antimanicomial continuar avançando. É necessário que os serviços busquem novas estratégias para lidar e acolher o sofrimento mental como algo próprio da experiência humana em sociedade. Temos que avançar no sentido de eliminar as barreiras arcaicas, oriundas de concepções preconceituosas acerca da loucura, que mudaram de fato na literatura, mas ainda persistem na prática. Ainda, nos dias atuais, o viés de tratamento do usuário da saúde mental carrega estigmas que persistem em segregar o usuário nos espaços de saúde. Segregação esta, que às vezes aparece de forma sutil, mascarada por um discurso de orientação e prescrição, no qual o profissional possui uma certeza a priori do que é bom para o sujeito usuário da saúde, antes de conhecê-lo.
Há uma complexidade na desinstitucionalização que diz do discurso e do tratamento direcionado ao usuário no cotidiano do serviço. Existem "muros" invisíveis que perpassam as instituições, os gestores, as equipes, as condutas, as intervenções e os encaminhamentos do usuário de saúde mental. Muitos destes atores sociais que atuam no contexto da saúde mental e da atenção psicossocial continuam agindo de maneira silenciosa e intolerante com o usuário do serviço. Além de contribuírem para práticas segregatórias que persistem em manter o usuário em um espaço limitado ao acesso à saúde.
É como se continuássemos dizendo aos usuários no cotidiano da Atenção Básica, não é aqui que você deveria estar, pois você é paciente de saúde mental, tem que ir para o CAPS. E, isso, se opõe justamente aos pressupostos da Luta Antimanicomial. A proposta, é que os serviços substitutivos se orientem a partir de relações que visem à micropolítica do desejo no campo social. Ou seja, um fazer inventivo, uma prática que se constrói nas relações. É o encontro com o outro que dita o tom do acolhimento e do cuidado. Como se pode perceber na própria descrição dos documentos:
a rede de serviços de saúde mental deve trabalhar com a lógica do território, de forma integrada aos demais serviços de saúde, fortalecendo e ampliando as ações da Estratégia de Saúde da Família, Equipe de Saúde Mental na Atenção Básica e Núcleos de Apoio à Saúde da Família (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2010, p. 22) 6.
6 Relatório Final da IV CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL INTERSETORIAL em 27 de junho a 1 de julho de 2010. Brasília: Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, 2010.
Embora a concepção de território se apresente como uma saída para a construção da afirmação da cidadania e a construção de rede intersetorial, o próprio território em si, não garante práticas emancipatórias. Conforme a literatura, afirma-se que:
o território não nos garante nada. O território é um desamparo absoluto. Ele está fora daqueles lugares que nos asseguram o exercício da clínica naquelas tradições nas quais fomos formados: o consultório, o ambulatório, o hospital psiquiátrico, a emergência. O território é, ao mesmo tempo, aproveitando a lembrança inevitável do Guimarães Rosa, o território... "é o mundo". Se o território é o mundo, se o território é o sertão, ele tem que ser apropriado permanentemente. Esta apropriação é a clínica. Esta apropriação não se dá como uma condição para a clínica. Ela é a clínica mesma. Porque é nesse lugar do território que construiremos o espaço, o lugar social da loucura. (DELGADO, 2007, p. 61).
O território sem os atores sociais implicados com o fazer inventivo das ações, torna-se mecânico, burocratizado, enrijecido e estanque. Habitar no território significa poder apropriar-se de espaços de vida. É se colocar diariamente frente ao imprevisível, ao acaso das incertezas, do não saber.
Somente se continuarmos a repetir que "não sabemos nada sobre a loucura" (ROTELLI, 2015, p. 39) é que poderemos abrir nosso olhar, abrir nossa mente, abrir nosso corpo, abrir a cidade aos loucos. Nesse sentindo, entende-se que, só conseguiremos penetrar nas redes de atenção à saúde mental, a partir do usuário.
Ou seja, é a partir do sujeito, da sua demanda que será possível construir a conexão transversal com outras redes, com os outros saberes. Desse modo, estaremos criando espaços sociais que a loucura possa circular. Assim, conforme afirma Rotelli (2015) poderemos começar finalmente a nossa história.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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AMARANTE, P. (2007). Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.
BRASIL. Ministério da Saúde. 1991. Portaria N.º 189, de 19 de novembro de 1991. Ministério da Saúde Secretaria de Assistência à Saúde. Brasília, DF.
BRASIL. Ministério da Saúde. 1992. Portaria N.º 224, de 19 de janeiro de 1992. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Brasília, DF.
BRASIL. Presidência da República. Lei 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtorno mental e 118 redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
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Recebido em: 17 de Novembro de 2015
Aceito em: 09 de Janeiro de 2017
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