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Introdução
A partir da década de 1980 inicia-se no Brasil, a Reforma Psiquiátrica, através da crítica à ineficiência dos manicômios - marcados pelo histórico de violência, maus-tratos e exclusão -, e da luta pela criação de uma rede extra-hospitalar de apoio ao paciente psiquiátrico, o que implica que os usuários serão assessorados, porém mantendo o convívio com a sociedade. É nesta perspectiva que surgem os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), compostos por equipes multidisciplinares responsáveis por desenvolverem atividades voltadas para dar suporte ao usuário e suas famílias.
Atualmente, a Reforma Psiquiátrica é uma política pública de saúde; municípios entre 20 a 70.000 habitantes podem solicitar, junto ao Ministério da Saúde, a criação de um CAPS. Segundo dados do Ministério da Saúde1, em 2011 o número de CAPS no Brasil chegou a 1742, espalhados pelo território nacional – entre CAPS I, CAPS II, CAPSi e CAPSad2. Estes serviços são mantidos com recursos federais, estaduais e municipais.
Segundo Antônio Márcio Ribeiro Teixeira; Wellerson Durães de Alkimim; Jesus Santiago (2006), em Minas Gerais o processo de implantação destes serviços ainda está em construção. Após mais de 10 anos de serviço em Minas Gerais e há mais de 50 anos do início da Reforma Psiquiátrica em âmbito mundial, indubitavelmente muitos êxitos foram alcançados, mas a realidade é que a rede de Saúde Mental não comporta toda a demanda e existem inúmeras dificuldades políticas, além de operacionais, para os municípios radicarem os serviços.
Com base nesta realidade, desenvolveu-se, no curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Biológicas e da Saúde – FACISA/UNIVIÇOSA, no período de junho de 2011 a junho de 2012, um projeto de extensão intitulado "Reforma psiquiátrica e Saúde Mental: um estudo sobre a situação atual do CAPS em um município da Zona da Mata mineira". O
1 Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/mentaldados10.pdf
2 CAPS I: atende aos municípios com população entre 20000 e 70000 habitantes. Funciona de 8:00 às 18:00 horas de segunda a sexta-feira. A equipe mínima deste serviço é composta por um médico psiquiatra, um enfermeiro, três profissionais de nível superior de outras categorias profissionais: psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, pedagogo, professor de educação física ou outro profissional necessário ao projeto terapêutico, e quatro profissionais de nível médio.
CAPS II: atende aos municípios com população entre 70000 e 200000 habitantes. Funciona de 8:00 às 18:00 horas de segunda a sexta-feira. Pode ter um terceiro período funcionando até às 21:00. A equipe mínima deste serviço é composta por um médico psiquiatra, um enfermeiro com formação em saúde mental, quatro profissionais de nível superior de outras categorias profissionais: psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, pedagogo, professor de educação física ou outro profissional necessário ao projeto terapêutico, e seis profissionais de nível médio.CAPSi: Centro de Atenção Psicossocial infantil CAPSad: Centro de Atenção Psicossocial – álcool e outras drogas projeto teve como objetivos avaliar a eficácia do atual modelo de assistência em Saúde Mental em um município do interior do Estado de Minas Gerais3, e verificar as dificuldades enfrentadas pelos profissionais no cotidiano do trabalho em termos de infraestrutura e condução dos casos.
Metodologia
A observação participante4 foi escolhida como método privilegiado de pesquisa. Para tal, foram realizadas visitas técnicas com a duração de duas horas semanais ao CAPS a fim de analisar o funcionamento da instituição. Foram feitas entrevistas não-estruturadas com os usuários, com o objetivo de levantar as respectivas histórias pessoais.
Além disso, foram feitas observações nas oficinas de artesanatos oferecida pelo local, com o intuito de analisar o laço social e a interação entre os próprios pacientes, bem como a interação entre pacientes e funcionários.
Referencial Teórico
Em primeiro lugar, é preciso definir o que é a instituição hospital psiquiátrico. Neste sentido, faz-se necessário relembrar os estudos de Erving Goffman (1961) sobre os manicômios, prisões e conventos, aos quais o autor denomina instituições totais. Segundo Goffman (1961), uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.
Para Goffman, toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo: em resumo, toda instituição tem tendências de "fechamento". Algumas instituições, todavia, são muito mais "fechadas" que outras. Seu Omitimos o nome do município devido a questões éticas
4. "Trata-se de uma técnica de levantamento de informações que pressupõe convívio, compartilhamento de uma base comum de comunicação e intercâmbio de experiências com o(s) outro(s) primordialmente através dos sentidos humanos: olhar, falar, sentir, vivenciar… entre o pesquisador, os sujeitos observados e o contexto dinâmico de relações no qual os sujeitos vivem e que é por todos construído e re-construído a cada momento. Efetivamente, implica em estar e observar aonde a ação acontece. E mais: não apenas estar e observar onde a ação acontece, mas ser partícipe da mesma, visando um objetivo de pesquisa." (FERNANDES, F. 2011, p. 4) "fechamento" ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída.
Goffman propõe um aspecto central em relação ao qual se poderia descrever as instituições totais: a ruptura com uma disposição básica da nossa sociedade moderna, a saber, a separação entre três esferas da vida: o trabalho, a residência e o lazer. "Uma disposição básica da sociedade moderna é que o indivíduo tende a dormir, brincar e trabalhar em diferentes lugares, com diferentes coparticipantes, sob diferentes autoridades (...) ." (1961, p. 17) As instituições totais romperiam com esse modelo por três razões: a primeira é que todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade; a segunda é que cada fase da atividade diária do participante seria na companhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto; a terceira razão é que todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, e toda a sequência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e por um grupo de funcionários.
Ainda para Goffman (1961), o fato básico em uma instituição total é o controle de muitas necessidades humanas pela organização burocrática de grupos completos de pessoas. Consequentemente, existe uma divisão entre o grande grupo controlado, que podemos denominar o grupo dos internados, e uma pequena equipe de supervisão.
Desenvolvem-se dois mundos sociais e culturais diferentes, que caminham juntos com pontos de contato oficial, mas com pouca interpenetração. É significativo observar que o edifício da instituição e seu nome passem a ser identificados tanto pela equipe dirigente quanto pelos internados como algo que pertence à equipe dirigente, de forma que quando qualquer dos dois grupos se refere às interpretações ou aos interesses "da instituição", implicitamente se referem ás interpretações e aos interesses da equipe dirigente.
Com tal afirmação, Goffman refere-se à centralização de poder existente nessas instituições. O que está em jogo, e o que será determinante, é sempre os interesses da equipe dirigente – nunca dos internos.
Segundo Heitor Resende (2007), a assistência psiquiátrica brasileira possui origem bastante peculiar, qual seja, a precedência da criação de instituições destinadas especificamente a abrigar loucos sobre o nascimento da psiquiátrica, enquanto corpo de saber médico especializado. Não só a nosologia psiquiátrica estava ausente das instituições (os alienados eram classificados e dispostos nos diversos setores e enfermarias segundo critérios classificatórios essencialmente leigos: alienados comuns, perigosos, criminosos, condenados, etc.), como também leigos eram os critérios de seleção da clientela, a juízo da autoridade
pública em geral, o saber médico não sendo chamado nem mesmo para referendar esses processos. Ainda para este mesmo autor, pode-se estabelecer grosseiramente o período imediatamente posterior à proclamação da República como o marco da ascensão dos representantes da classe médica ao controle das instituições. Isso não significa, todavia, que a entrada da psiquiatria nos hospícios coincida com o advento de uma terapêutica. O tratamento utilizado era a clinoterapia (repouso no leito) e a laborterapia (trabalho disciplinado como forma de terapêutica).
E que dizer dos "maus tratos e das cacetadas‟ dos primeiros tempos de assistência psiquiátrica? Tudo indica também que persistiram tal como antes. Lopes Rodrigues, ao assumir a direção do Instituto Raul Soares, em Belho Horizonte, em 1929, assim resumia a situação dos internados (que documentou com fotos): "da maioria dos quartos, funcionando como prisões, partiam os gritos dos insanos, trancados, atados e imobilizados. Os esgares ecoavam pelos corredores, em cujos lajedos outros tantos pacientes jaziam com os punhos amarrados (...), cordas, correias, tiras, manchões, argolas, lonas e coleiras formavam o arsenal patético... os braços livres que restavam, fora dos manquitos célebres, eram para atirar montões de fezes pelas paredes, que iam até os tetos. (...) Diariamente o chamado carro-forte da polícia despejava à porta do Instituto, com guias dos Delegados, magotes de loucos de todo gênero‟. (RESENDE, 2007).
De acordo com Foucault (1973), uma das características de tais instituições foi a criação de um novo tipo de saber: o saber epistemológico, um saber oriundo da observação dos indivíduos, de sua classificação, do registro e da análise do seu comportamento, da sua comparação, etc. Um saber de certa forma clínico, do tipo da psiquiatria, da psicologia, da criminologia. É assim que os indivíduos sobre os quais se exerce o poder são objetos de um saber que permitirá também novas formas de controle. "O saber psiquiátrico se formou a partir de um campo de observação exercida prática e exclusivamente pelos médicos enquanto detinham o poder no interior de um campo institucional que era o asilo, o hospital psiquiátrico." (FOUCAULT, 1973, p 122) O que Foucault denuncia é a centralização do poder psiquiátrico, e que tal poder foi a mola propulsora para a gestação de um saber sobre a psicopatologia, saber este que se voltou para técnicas de normalização e controle.
De acordo com Silvio Yasui (2006), a psiquiatria começou a transformar-se em um lucrativo negócio e, para defendê-lo, formou-se um poderoso lobby que atuava, e ainda atua, impedindo qualquer tentativa de mudança. Segundo Tenório (2002), a maioria das internações psiquiátricas era realizada em instituições privadas, remuneradas pelo setor público. A única fonte de renda destas clínicas eram as internações, pagas sob a forma de diárias por cada paciente. A receita seria maior de acordo com três variáveis: quanto maior o número de
pacientes internados, quanto maior o tempo de internação e quanto menor o gasto da clínica com a manutenção do paciente.
Em 1960 teve início, na Itália, a Reforma Psiquiátrica, tendo como grande nome o psiquiatra Franco Basaglia. Em princípio, a ideia era lutar pela humanização dos manicômios.A Reforma Psiquiátrica brasileira foi assim definida por Amarante:
Está sendo considerada reforma psiquiátrica o processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. No Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais concreta e principalmente a partir da conjuntura da redemocratização, em fins da década de 1970, fundado não apenas na crítica conjuntural ao subsistema nacional de saúde mental, mas também, e principalmente, na crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas (...). (AMARANTE, 1995 apud TENÓRIO, 2002, p. 27)Ou seja, a ideia da Reforma Psiquiátrica desloca seu objetivo: se a crítica incidia, no início, aos excessos e abusos da psiquiatria, em um segundo momento a crítica passou a ser sobre os pressupostos do modelo asilar, e o movimento deslocou sua luta da humanização dos manicômios para a elaboração de serviços que substituam a lógica hospitalocêntrica.
Segundo Tenório (2002), o ano de 1987 constitui um marco para a Reforma Psiquiátrica Brasileira, por assistir a dois eventos: a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental. Foi na I Conferência Nacional de Saúde Mental que vimos surgir o processo de desinstitucionalização, ou seja, não se trata de abrir as portas do hospício e deixar os loucos à sua própria sorte, mas de acabar com os abusos da instituição manicômio e pensar outro modelo capaz de garantir a assistência à saúde mental. A partir do II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental passa a ficar mais clara a natureza do movimento: não se trata apenas de uma discussão científica sobre a loucura, mas de envolver os profissionais da área, os usuários e seus familiares – o objetivo, na verdade, é uma mudança cultural sobre o olhar em relação à loucura. É neste encontro que surge o slogan "Por uma sociedade sem manicômios", que permanecerá como lema do movimento.
Ainda de acordo com Tenório (2002), em 1989 o deputado Paulo Delgado apresentou um projeto de lei em âmbito nacional com três objetivos: impedir a construção ou contratação de novos hospitais psiquiátricos pelo poder público; direcionar recursos públicos para a criação de serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos; obrigar a comunicação de internações compulsórias à autoridade judiciária. A lei foi aprovada apenas em 2001, mas
Tenório (2002) destaca que a apresentação do projeto de lei em 1989 teve o efeito de produzir uma intensificação sem precedentes na discussão sobre o tema em todo o país, que não ficou restrita aos meios especializados e fez avançar o movimento da reforma. Ou seja, pode-se perceber que a Reforma Psiquiátrica é um movimento social: não se restringe aos meios especializados, mas engloba os familiares e pretende levar a discussão para a sociedade como um todo. Trata-se, ainda, de um movimento político, haja vista a aprovação dos projetos de lei e da criação de um modelo substitutivo com recursos públicos.
A Reforma Psiquiátrica fundamenta-se na criação de uma rede de serviços alternativos ao manicômio; neste sentido, surgem as experiências dos CAPS,que têm a missão de dar um atendimento diurno às pessoas que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, num dado território, oferecendo cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, com o objetivo de substituir o modelo hospitalocêntrico, evitando as internações e favorecendo o exercício da cidadania e da inclusão social dos usuários e de suas famílias. (BRASIL, 2004)5 Segundo BRASIL (2004), um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é um serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele é um lugar de referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja severidade e/ou persistência justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida. O objetivo dos CAPS é oferecer atendimento à população de sua área de abrangência, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. É um serviço de atendimento de saúde mental criado para ser substitutivo às internações em hospitais psiquiátricos.
O que tem sido descrito pela literatura recentemente, todavia, nos indica o enrijecimento dos CAPS enquanto instituições, ou, nas palavras de Sanduvette (2007), acomodar-se na rotina:
Acomodar-se nas rotinas, repetindo tarefas, pode redundar no que se vê com os pacientes que permanecem dias, semanas, meses ou anos sentados no mesmo sofá, vendo os mesmos programas de televisão, convidados a comparecer ao grupo com a psicóloga (os "resistentes" não vão), às vezes indo à mesma oficina de reciclagem de materiais... Acomodar-se nas rotinas, repetindo tarefas, pode ser a manutenção dos mesmos e únicos procedimentos de avaliação clínica médico-centrados, a prescrição farmacológica contendo e definindo o espaço de tratamento, as ações dos outros profissionais permanecendo periféricas (...)
5 Disponível em http://www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/pdf/SM_Sus.pdf
Ainda segundo Sanduvette (2007), não basta estar dentro do CAPS, por algumas horas diárias, repetindo tarefas, às vezes até bem eficientes, mas ineficazes se não implicam em evolução psicossocial dos pacientes. Neste mesmo sentido, a convivência entre pacientes e profissionais não garante, no entanto, que as equipes multiprofissionais consigam superar as dificuldades para praticar a desejada interdisciplinaridade nas suas ações, decorrendo com frequência que a assistência permaneça centrada no modelo clínico de assistência individual. Os espaços físicos delimitados para as funções profissionais específicas denunciam a clínica tradicional e a cisão entre as ações: a sala do psiquiatra, a do psicólogo, as oficinas de terapia ocupacional, o posto de enfermagem, a assistência social também separada.
Discussões
O que pudemos observar em nossa pesquisa foi, em primeiro lugar, a falta de infraestrutura no serviço: por exemplo, apesar de haver medicação disponível no local para os pacientes, pois eles tomam e levam para casa os medicamentos prescritos pelo médico, muitas vezes faltam medicamentos. Além disso, há carência de profissionais, pois o CAPS atende não só o município, mas também toda a microrregião, e, em consequência disso, os profissionais atuantes enfrentam obstáculos.
Sobre o serviço de psicologia do local, cabe ressaltar as condições de trabalho do profissional: há apenas um psicólogo na instituição, com carga horária de vinte horas. Tal carga horária é insuficiente para um tipo de serviço como o da psicologia, que se caracteriza por ser qualitativo, e para um tipo de demanda como a clínica da psicose e a dependência química, que exigem um acompanhamento singular. O que nos chamou atenção foi que o tempo que permanecemos na instituição houve a contratação de outro psiquiatra: ou seja, o serviço conta com dois psiquiatras, totalizando quarenta horas de atendimento semanal, versus vinte horas de atendimento psicológico.
Outro aspecto importante a ser destacado é que no município não existe um CAPSad – álcool e outras drogas. Ou seja, tanto os pacientes psicóticos quanto os dependentes químicos são tratados no mesmo local – o CAPS I. Percebeu-se que a equipe profissional é despreparada e desmotivada para lidar com a dependência química. Vários profissionais relataram: "se for continuar dessa forma (atendimento com psicóticos e dependentes químicos) eu vou pedir para trabalhar em outro lugar"; "eu gosto de trabalhar com psicóticos.
O trabalho com dependentes químicos é muito frustrante, não sei se quero continuar aqui não".
Verificaram-se muitas vezes divergências de opiniões nos casos tratados; assim, o que supostamente era para ser um trabalho em equipe, acabava se tornando monopolização de saber (psiquiátrico). Em contrapartida, um dos psiquiatras relatou que ninguém da equipe quer assumir a responsabilidade pela condução dos casos ("carimbar e assinar", nas palavras dele). De acordo com o mesmo médico, há dependência da instituição em relação aos psiquiatras.
Um dado a ser destacado é que no início da pesquisa, havia apenas um psiquiatra que trabalhava vinte horas. Três meses depois, devido a questões políticas do município, o médico foi transferido para um PSF, e o CAPS ficou aproximadamente três meses sem médico, até a contratação de um profissional. Foi interessante observar o movimento na instituição nessas três fases: com psiquiatra – sem psiquiatra – com psiquiatra. Nos momentos com psiquiatra, o serviço funcionava a pleno vapor; nos meses sem psiquiatra, o CAPS tinha praticamente fechado as portas: não estava recebendo novos pacientes, e também não queria receber os antigos intensivos, porque não queria se responsabilizar pelos pacientes na ausência do médico. Vários funcionários disseram: "o certo era a gente nem estar funcionando". Mesmo com uma equipe de profissionais – enfermeiro, psicólogo, assistente social, técnico de enfermagem, terapeuta ocupacional -, na ausência do psiquiatra foi como se a instituição estivesse mesmo fechada. Permaneceram os atendimentos de caráter ambulatorial destes profissionais, mas os pacientes intensivos e semi-intensivos foram dispensados.
Ainda sobre a equipe profissional, notamos que a assistente social e a psicóloga não dirigem a palavra ao psiquiatra. A divisão da equipe é tão extrema que a assistente social chegou ao ponto de não pronunciar o nome dele, referindo-se apenas como "o médico". Como Verônica Sanduvette (2007) apontou, o fato de existirem múltiplos profissionais em um serviço não garante a existência de um trabalho em equipe.
Observou-se, ainda, que os pacientes se sentiam ociosos, porque só era oferecido um formato de oficina (de artesanato). Essa era a única atividade realizada no CAPS no período da tarde6. Em decorrência disso, quem não gosta desse tipo de atividade ou não pode realizá-la, por algum motivo7, fica completamente desmotivado a permanecer no local. Devido a essa falta de entretenimento os pacientes querem ir embora muito mais cedo que o previsto. Tal 6 Nossa pesquisa foi desenvolvida apenas no período da tarde. Infelizmente não foi possível observar o funcionamento da instituição na parte da manhã.
7 Como observamos alguns casos de pacientes que não conseguiam realizar as atividades porque não enxergavam e estavam sem óculos realidade condiz com que o foi citado acima por Sanduvette (2007), que utilizou a expressão "acomodar-se à rotina".
O que este trabalho propõe questionar é a distância que podemos observar entre o CAPS analisado e as instituições totais estudadas por Goffman. Recapitulando o que foi citado, o autor sugere que as instituições totais promovem algumas mudanças em relação à vida que o indivíduo levava anteriormente, em três sentidos: o primeiro é que todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade; o segundo é que cada fase da atividade diária do participante seria na companhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto; o terceiro é que todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, e toda a sequência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e por um grupo de funcionários.
Quanto à primeira questão, podemos dizer que a reforma psiquiátrica modifica essa relação, uma vez que o paciente do CAPS volta para sua casa ao final do dia, para ter convívio com a sua família; ou seja, a ruptura entre trabalho, lazer e residência se restabelece.
No que se refere à segunda questão, ao fato de não haver privacidade, pode-se dizer que há, atualmente, uma modificação razoável. De maneira geral os pacientes convivem em coletivo, mas caso alguém queira ficar sozinho isso é respeitado (não sem insistência para que ele retorne ao grupo).
Em relação à terceira questão, a imposição das atividades, torna-se perceptível que tal aspecto permanece quando retomamos o que foi citado acima sobre as oficinas, quer dizer, é oferecido apenas um formato de oficina (de artesanato). Caso o paciente não tenha interesse em participar, terá que permanecer ocioso na instituição. De certa forma é uma imposição; não à participação na atividade, mas à presença no CAPS até as 16 horas. O caráter de enrijecimento institucional permanece, através do quadro que se observa no local: pacientes (dopados) sentados na frente da televisão, dia após dia, mês após mês.
Outro aspecto retirado da obra de Goffman citado acima foi a centralização do poder pela equipe dirigente. Tal aspecto é observado no CAPS analisado: o que mais salta aos olhos é a centralização do poder médico. Uma instituição de saúde mental que mantém psiquiatras 40 horas e demais serviços como psicologia e assistência social por 20 horas deixa bem claro o tipo de serviço que oferece, preferencialmente, aos seus usuários. O que é corroborado no momento em que a instituição praticamente fechou as portas devido ao afastamento do psiquiatra por questões políticas.
Mantêm-se, assim, as relações de poder-saber denunciadas por Foucault. O poder da equipe dirigente – principalmente do médico – se reflete em todas as decisões da instituição: que dia o paciente pode ficar na instituição, que horas ele pode ir embora, a hora que ele deve se alimentar, o momento em que ele deve receber alta (e a partir de então as portas estarão fechadas para ele, a menos que ele volte a ter crises). Existe um saber dos profissionais sofre os pacientes: quem eles são, do que precisam e a forma em relação à qual este bem-estar pode ser alcançado. Mais uma vez vemos as relações de poder-saber se voltarem para as técnicas de controle e normalização – tal como no século XIX.
Conclusões
Com as mudanças ocorridas nos últimos anos pela Reforma Psiquiátrica, percebemos a dificuldade de trabalho para os prestadores de serviços nos CAPS. Esses impasses clínicos e institucionais geram confusões na metodologia de trabalho e na prática profissional e afeta as diretrizes de tratamento.
Concluímos, de modo geral, que a equipe profissional do CAPS observado é extremamente cindida, o que se explicita pelo fato de a assistente social e a psicóloga não conversarem com o psiquiatra. Essa divisão traz prejuízos para o serviço como um todo, tanto no clima do ambiente de trabalho quanto nas discussões e conduções nos casos. O resultado disso é a centralização do poder médico, por ambos os lados: pela equipe, porque é mais confortável deixar o outro tomar as decisões e arcar com as consequências; e pelo médico, pela manutenção do poder e do status, além de manter seu saber (entenda-se ordens) inquestionável. A centralização do poder psiquiátrico fica bem demarcada pela presença de atendimento psiquiátrico quarenta horas semanais em contrapartida ao atendimento psicológico, que funciona apenas vinte horas semanais.
Uma avaliação que podemos observar com esse trabalho é que muitas mudanças positivas já ocorreram no âmbito da Saúde Mental, mas muitas transformações ainda devem ser feitas para a otimização do tratamento das doenças mentais.
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Recebido em: Abril de 2016 Aceito em: Outubro de 2016
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