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Resumo: O texto relata a importância da supervisão clínico-institucional na construção de um caso clínico do Centro de Atenção Psicossocial I em Buritizeiro, Minas Gerais. Durante a elaboração do caso, a equipe adquire um novo olhar sobre o paciente e encontra outras formas de lidar com o adoecer. Reorganiza a dinâmica do serviço, onde as discussões clínicas passam a ser mais valorizadas, proporcionando maior esclarecimento do diagnóstico e redirecionando a condução do caso.
Palavras-chave: construção de caso, CAPS, supervisão institucional.
Abstract: This report describes the value of clinical institutional supervision in a construction of a case in Psychosocial Attention Center I in Buritizeiro, Minas Gerais. During the construction of the case, the team gets a new approach of the patient and find other ways to deal with the illness. Reorganizes the dynamics of the service where clinical discussions become more valuable providing greater elucidation of diagnosis and redirecting the conduction of the case.
Keywords: case construction, CAPS, institutional supervision.
O relato desta experiência é fruto da assistência aos portadores de transtorno mental no Centro de Atenção Psicossocial I (CAPS) de Buritizeiro, na região norte mineira. O CAPS faz parte da rede de saúde do município juntamente com o Hospital Municipal, seis Unidades Básicas de Saúde, Centro de Especialidades Odontológicas, Centro Odontológico, Centro de Referência em Saúde da Mulher e Centro de Especialidades Médicas. Conta com equipe mínima em prédio próprio e atualmente possui 1879 pacientes cadastrados. A contagem da população em 2007 realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística foi de 26.133 habitantes dentro de um território de 7.226 Km², compreendendo zona urbana e rural (IBGE, 2007).
Convidados pelo Dr. Wellerson Alkmim, pesquisador do CNPq, a participar da pesquisa “Investigações sobre os efeitos discursivos da capscização do Estado de Minas Gerais”, consideramos que seria muito produtivo para nós, pois de certa forma teríamos uma supervisão do caso em questão, e esta era uma necessidade sentida pela equipe. Os relatos de experiências de supervisão dentro da perspectiva psicanalítica apontam para mudanças significativas nas equipes possibilitando repensar as práticas de cuidados, organização dos serviços e a inserção em uma rede de atenção (SILVEIRA, 2008). Participamos das duas primeiras chamadas de Supervisão Clínicoinstitucional do Ministério da Saúde, mas não tínhamos sido contemplados.
O caso A.P.Q. foi escolhido pela equipe, por se tratar de um caso relativamente estabilizado a partir de seu ingresso no CAPS, mas ainda sem condições de alta. O CAPS deve ser um local de passagem e a permanência-dia deve ser apenas uma etapa na vida do paciente (MINAS GERAIS, 2006).
A.P.Q. foi um andarilho, sujeito a surtos psicóticos, com várias internações psiquiátricas em diferentes municípios. Freqüenta o CAPS há tempos, tendo apresentado melhora significativa, com períodos de reagudização do quadro ao final do ano, chegando mesmo a ser internado uma vez desde sua chegada ao nosso serviço.
Quando começamos a escrever o caso para enviar para o Dr. Wellerson e sua equipe, sentimos dificuldade, pois o caso não havia sido construído. Percebemos que não possuíamos dados suficientes para enviar e conseqüentemente avançar na condução do tratamento, pois até então só havíamos tratado a crise, e acompanhado os períodos de melhora.
Acreditamos que a construção do caso começou neste momento. A equipe percebeu que outro olhar pudesse redirecionar o tratamento do paciente a fim de melhorar sua qualidade de vida. O papel do supervisor é definido como uma tarefa complexa onde se contextualiza permanentemente a situação clínica, foco do seu trabalho, considerando as tensões e a dinâmica da rede e do território (BRASIL APUD SILVEIRA, 2008).
A construção do caso é a composição da história do sujeito a partir do seu discurso e seus significantes. É o momento da escuta que propicia a colheita de elementos que possibilitam nortear a condução do caso e dar direções para novas intervenções ou atuação da equipe (FIGUEIREDO, 2004).
Ao escutar o sujeito, sem medo ou prepotência, percebemos que a loucura, antes de ser uma doença, é uma experiência humana e deve ser tratada como tal (MINAS GERAIS, 2006). É o momento que o usuário do serviço de saúde mental exerce o direito de se pronunciar e falar daquilo que lhe aflige. É errôneo acreditar que os portadores de sofrimento mental não sejam capazes de dizer o que querem.
O primeiro relato do prontuário de A.P.Q. consta que a família do paciente procurou o Centro de Saúde em 1993. Nesta época uma psicóloga trabalhava no ambulatório do Centro de Saúde e o atendimento médico era realizado pelo clínico desta instituição. A informante, sua irmã, relatou que há quatro meses o comportamento de A.P.Q. havia mudado. A queixa era que existiam pessoas querendo pegá-lo, às vezes não se alimentava com medo de ter veneno na comida, estava com insônia e sem tomar banho. Ficava correndo pela rua chegando a atravessar a ponte em direção à cidade vizinha. Houve também relato de tentativa de suicídio. Como o paciente não havia comparecido, não houve avaliação, apenas foi registrado
o comparecimento da família e a queixa.
O próximo contato no ambulatório deu-se dois anos depois, quando a família informou sobre uma internação de um mês e meio. O “tratamento” consistiu em repetição de receita com os clínicos do Centro de Saúde, até 1998, quando foi contratado um psiquiatra.
Os relatos do prontuário são sempre referentes às crises, internações, sintomas e prescrição.
Em abril de 2004 o CAPS de Buritizeiro é inaugurado. Possuíamos agora uma estrutura que nos possibilitaria construir novas formas de lidar com o sofrimento psíquico, em especial com a psicose e a neurose grave, diversa da forma excludente e tutelar do hospital psiquiátrico (RINALDI & LIMA, 2006).
O paciente é considerado sujeito a surtos psicóticos freqüentes sempre com abandono de tratamento nos períodos de remissão. Consideramos que em 2006 A. P. Q. deixou de ser paciente e tornou-se sujeito, mas só
o percebemos ao escrever este caso. Compareceu ao CAPS sozinho, em surto, sem medicação, delirante, desorganizado e exaltado. Fizemos o acolhimento e, em seguida, visita domiciliar para avisar a família que sua consulta estava agendada para o psiquiatra, mas não compareceram.
Passados seis dias procurou o serviço novamente; delirante, dizendo ser da polícia federal e que a coordenadora estava lendo seus pensamentos. Realizou-se nova visita domiciliar para avisar a família da consulta com o psiquiatra. O irmão alegou que estava com medo de levá-lo à força, porque segundo ele: “só consigo levá-lo com a ajuda da polícia e depois vai ser pior, ele vai ficar com raiva de mim”. Compareceu sozinho à consulta. Delirante, muito desorganizado e exaltado.
Notamos com isso, que o CAPS passou a ser um ponto de referência e apoio para ele. As “visitas” ao CAPS ficaram mais freqüentes e com o tempo, mais longas. Passou a aceitar a consulta com o psiquiatra e a medicação. Nesse momento que foi convidado a participar das oficinas terapêuticas.
Em fevereiro de 2007 começou a freqüentar o CAPS em regime intensivo. Ainda nesse ano arrumou emprego com o tio na zona rural em uma carvoeira. Foi orientado que ainda não era hora de se afastar do tratamento, que precisava melhorar um pouco mais. Levou a medicação com o compromisso de voltar no mês seguinte.
Em março de 2007, foi realizada visita domiciliar, pois o paciente retornou para casa, não estava mais trabalhando e ainda não havia procurado o CAPS. Relatou que sentia dormência no corpo, fraqueza e que continua com a medicação corretamente. Voltou a freqüentar o CAPS diariamente, continua delirante, diz que seu corpo está se modificando, que entrou alguma coisa nele, ouve vozes, tem insônia.
Essa constatação aumentou muito a ansiedade da equipe no sentido de darmos uma nova direção à condução do caso e aguçou a necessidade da Supervisão Clínico-institucional, pois estávamos concorrendo à IIIª chamada.
Preparamo-nos para o primeiro encontro com a equipe da pesquisa. Como notamos a falta de informações referente ao passado de A.P.Q., um membro da equipe do CAPS realizou uma visita domiciliar com o objetivo de colher informações para que pudéssemos construir o caso juntos. Essas informações foram colhidas com a mãe. Outro membro da equipe se propôs a conversar com ele sobre seu passado, mas este não obteve sucesso, pois A.P.Q. é muito fechado.
No primeiro encontro com a equipe da pesquisa percebemos a importância desses novos dados. Uma “curiosidade persistente” de saber alterou o cotidiano da equipe (SILVEIRA, 2008). À medida que íamos discutindo ficava clara a razão da piora em determinados momentos. Percebemos que esses novos dados poderiam mudar a direção do tratamento, e pudemos perceber também o quanto o CAPS foi importante na melhora da qualidade de vida de A.P.Q. Deixou de ser andarilho, reside com a família, freqüenta o CAPS, participa das atividades propostas e está sempre disposto a ajudar, seja o colega, seja a equipe, embora continue uma pessoa muito fechada.
Nos dias que se seguiram após esse primeiro encontro, alguns membros da equipe tentaram conversar com A.P.Q., como sempre fazíamos no horário após o almoço, mas direcionando a conversa para o passado. Isso foi feito com muito cuidado e alguns dados se confirmaram. A.P.Q. demonstrou certa resistência e por ser uma pessoa muito reservada e desconfiada, nós não insistimos, pois poderíamos perder o vínculo.
Nessa fase, a equipe passou por um período de questionamento, pois agora tínhamos mais dados, considerados muito importantes para a compreensão do desencadeamento da doença, das crises e das remissões, mas ao mesmo tempo não sabíamos o que realmente fazer com eles. A.P.Q. não dava abertura para nenhum técnico do CAPS. Um sentimento de intranqüilidade e impotência se abateu sobre quase toda a equipe, pois sentíamos a necessidade de fazer mais pelo paciente.
Esse sentimento fez com que a equipe compreendesse que cada profissional de saúde mental tem um grau de responsabilidade com o usuário e o seu tratamento, sendo fundamental a participação de todos nos cuidados e nas decisões que serão tomadas. O trabalho em equipe não consiste apenas na troca de saberes e de experiências, é também um exercício de democratização da relação entre os trabalhadores, conferindo a todos eles, seja qual for sua formação profissional, direito de voz e de voto.
Entre o primeiro e o segundo encontros com a equipe da pesquisa fomos contemplados com a tão esperada supervisão Clínico-institucional. Esta foi iniciada imediatamente, mas o objetivo do primeiro encontro era apenas para levantar o diagnóstico situacional do CAPS.
Diante disso, os sentimentos de intranqüilidade e impotência frente ao caso nos acompanharam até o segundo encontro. A equipe da pesquisa desta vez estava um pouco diferente, alguns profissionais que não puderam vir no primeiro encontro participaram deste, e outros que participaram do primeiro não puderam estar presentes neste. A supervisora Clínico-institucional foi convidada, e também estava presente. A coordenadora da Unidade Básica de Saúde e a agente comunitária de saúde que acompanham a família de A.P.Q., também foram convidadas, mas não puderam participar.
Novamente nos deparamos com outra visão sobre o caso. Foram levantados novos questionamentos, novas suposições, novas construções. Às vezes tínhamos a sensação de saber qual direção dar ao tratamento de A.P.Q., outras vezes de estarmos perdidos e outras ainda de que tínhamos conduzido o tratamento muito bem. Tínhamos mais perguntas do que respostas. Será que a necessidade sentida pela equipe de fazer mais pelo paciente era em benefício próprio ou em benefício dele? Será que estávamos respeitando o desejo de A.P.Q., uma vez que ele se mostrava desconfiado e mais calado? Ou será que estávamos atropelando esse desejo ao invés de despertá-lo?
Aos poucos a sensação de intranqüilidade e impotência da equipe desapareceu quando percebemos que apesar da falta de dados sobre o passado de A.P.Q., a condução do tratamento fora acertada, tendo em vista a melhora significativa até o momento.
Construir o caso clínico é colocá-lo em trabalho, registrar os seus movimentos, recolher as passagens subjetivas e escutá-lo (VIGANÒ, 1999). Nesse sentido, a equipe da pesquisa contribuiu muito para o esclarecimento do diagnóstico e para a condução do caso, pois apesar de continuarmos com mais perguntas do que respostas constatamos que através desses questionamentos avançamos, e é o próprio paciente que nos indica a direção do tratamento.
A equipe do CAPS estava voltada para a resolutividade da crise e da sua remissão. Ter
o índice de internação praticamente zero já não é mais suficiente para a equipe, que passou a se preocupar mais com a qualidade de vida no período de remissão, ou seja, com a reinserção social. O contato com o paciente e sua família que antes tinha como objetivo apenas o acompanhamento e orientações a fim de evitar recaída, hoje também é fonte de coleta de dados.
Os projetos terapêuticos individuais passaram a ser reavaliados de maneira mais constante, fortalecendo assim o vínculo do paciente com o profissional de referência, proporcionando maior esclarecimento do diagnóstico e redirecionando a condução do caso, promovendo o protagonismo de cada usuário frente a sua vida.
Esses dois encontros foram suficientes para estimular as discussões clínicas, e despertar a equipe do CAPS no sentido de avançar na reinserção social. Afinal, como dita a Linha Guia de Atenção em Saúde Mental, o usuário de saúde mental deve ter sua cidadania reconhecida, e uns dos objetivos dos cuidados em saúde é ajudar na conquista de direitos fundamentais de todo cidadão, como moradia, trabalho, cultura e condições dignas de vida (MINAS GERAIS, 2006).
A supervisão atua no instante do olhar e requer do supervisor um lugar suposto saber (VIGANÒ, 1999). Nesse sentido o supervisor “como mais um não é um a mais”, pois cumpre a função ao mesmo tempo de alguém externo e interno, permitindo que o trabalho tenha desdobramentos e seu produto tenha um registro (FIGUEIREDO, 2005). Por enquanto, as discussões clínicas realizadas com a equipe da pesquisa não produziram efeito sobre o paciente, mas foram de suma importância para a compreensão do diagnóstico.
O caso A.P.Q. continua em construção podendo contar agora com a supervisão Clínico-institucional.
Referências Bibliográficas
IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, disponível em <http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1> acesso em 21/09/09
FIGUEIREDO, A. C. (2004) “A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à saúde mental”. Revista Latino americana de psicopatologia fundamental. v. VII, n. 1, São Paulo, pp. 75-86.
FIGUEIREDO, A. C. (2005) “Uma proposta da psicanálise para o trabalho em equipe na atenção psicossocial”. Mental, nov. 2005, vol.3, no. 5, Barbacena p.43-55. ISSN 1679-4427.
MINAS GERAIS. (2006) Secretaria de Estado de Saúde. Atenção em Saúde Mental. Marta Elizabeth de Souza. Belo Horizonte.
RINALDI, D.L. & LIMA, M.C.N. (2006) “Entre a Clínica e o cuidado: a importância da curiosidade persistente para o campo da saúde mental”. Mental, ano IV -n. 6 – Barbacena, pp. 53-68.
SILVEIRA, A. R. (2008) “A prática de supervisão em serviço de atenção diária no tratamento das toxicomanias”. (Apresentação de Trabalho/Comunicação)
VIGANÒ, C. (1999) “A construção do caso clínico em Saúde Mental” in EBP – MG, Curinga 13, Belo Horizonte, PP. 50-59. |
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